Prelúdio Gawonii - Corpo Quebrado, Alma Sã

Cuidado com o homem que não fala e o cão que não late - Provérbio Cheyenne.

Algum lugar na Grande Planície, Território Dakota - 1873



*Era raro, cada vez mais raro ter uma visão dessas nas Terras Puras - a face de Gaia intocada até onde a vista alcançava, sem as chagas da Weaver e Wyrm trazidas pelo Homem Branco, sem postes de telégrafo, linhas de trem, cidades ou minas. Mas ainda assim o toque dos Arautos da Wyrm se faz presente: numa região onde o Bisão abundava, fornecendo carne, couro e força para os Puros, nenhum mais podia ser visto, praticamente dizimados pela cobiça e pelas armas do Homem Branco.

No meio a esse oásis de paz, Gawonii escutava. Escutava seus próprios batimentos cardíacos, a Fúria pulsando dentro de si, escutava o Vento carregando as mensagens de Gaia e, acima de tudo, escutava os próprios pensamentos, porque Ele Ouve Mais do Que Você.

Dentre as coisas que ouvia, Gawonii também percebia a respiração áspera de seu avô, Chea Sequah. O velho era mau-humorado e um tutor severo, mas ele ensinou muito ao jovem Theurge. E se era um professor rígido, como ele mesmo dizia, era porque a vida não seria gentil com um Impuro, então ele deveria aprender a rejeição e sofrimento desde cedo. E, após horas agradáveis de meditação, onde estava no seu lugar favorito - sua própria mente - Gawonni escuta a voz do Pássaro Vermelho.*

-Acorde, criança. Volte suas orelhas para fora, porque essas palavras serão importantes.

*Gawonii abre seus olhos; está na forma Hominídea, conquista alcançada após tantos anos usando a pele de Crinos.*

*Gawonii contemplava o território da Wild em seu "silêncio de fora". Pouco escutava, e apenas o sussurro do vento chegava a seus ouvidos, por conta de suas orelhas atrofiadas.

Em meio ao belo território selvagem o jovem xamã encontrava a paz e a quietude para contemplar a beleza de Gaia, e realizar um pequeno ritual.*

HÁLITO DE GAIA


*Esvaziar a sua mente e encontrar o seu "silêncio de dentro" era uma tarefa árdua para o jovem índio, mas a concentração para o ritual o ajudava. Os pensamentos que gritavam em sua cabeça em vozes dissonantes foram desaparecendo. Ele um inspirou o ar puro. Era a primeira vez que realizava o ritual em sua recém descoberta forma homídea. Sentia que estava diferente, que menos ar entrava (a nova pele era estranha em um pouco desconfortável) mas o ritual era igualmente reconfortante. Expirou, e tudo saía de sua mente. Só o amor a Gaia permanecia. Prosseguiu o rito inspirando e expirando por mais doze vezes*

*Sorriu para o deserto, como uma criança que se afasta dos limites do acampamento pela primeira vez. E era uma criança naquele novo corpo, que apesar de estranho, o deixava de alguma forma mais proximo da tribo.*

*Sua mente estava limpída. Até sentir uma presença se aproximando. A voz de seu avô chegou como um trovão em seus ouvidos. A mente do xamã começava a retornar a seu estado normal. Seu avô era rígido e exigia muito, mas Gawonii sabia o valor de seus ensinamentos, e sentia que vivia sob a presença e a proteção do Grande Ancião.*

*Mas ele estava sendo chamado. E isso podia não ser bom. Alguma coisa podia ter acontecido. Ele transpirava quando se ergueu e respondeu ao forte líder dos Uktena com uma voz não muito firme e pouco acostumada a fala nessa nova forma. E nunca fora muito falante enquanto Crinos também*

- Contemplava a beleza da Wyld e meditava em Gaia, avô. Mas aqui estou.

*Abria os braços, exibindo a nova forma. Era alto e forte, mas também ddesengonçado. O rosto transmitia a expectativa. E um pouco de medo.*

*O que virá agora? Pensou o índio.

*O velho está na frente de Gawonii, severo como sempre. O jovem xamã nunca soube se ele havia sido assim com sua mãe também, ou o tratava diferente por ser impuro. Ou se simplesmente era a maneira de ser do velho índio.*

*A verdade era que Chea Sequah já estava reclamando*

-Você passa tempo demais dentro dessa sua cabeça feia, Gawonii. Eu lhe dei seus dois nomes, e você abraçou os dois com uma paixão que nunca vi. Mais do que seria normal.

*O velho continua falando, pontuando cada palavra com um cutucão na testa do impuro.*

-Você. Precisa. Sair. Daí. Você já sofreu sua Mudança, Theurge! Acha que sua vida é difícil por ser impuro? A vida é difícil para todos nós das Terras Puras, seja ele Irmão Mais Velho ou Irmão Mais Novo. O problema não é se a vida é difícil. É o que você está disposto a fazer com ela.

-Então eu te pergunto, Gawonii, Escuta Mais do Que Você. O que está disposto a fazer por Gaia? Pela sua Tribo que sempre o desprezou e o considera miolo-mole? Pelo seu avô que te importuna com lições que nunca vai usar na vida?

*O efeito do pequeno ritual do Hálito de Gaia mantinha o jovem índio em relativa tranquilidade*

*Relativa*

*Gawonii conseguia parar de pensar que apesar da mudança ele ainda era um impuro, e deveria ir embora. Já havia trocado de pele e poderia se afastar agora.*

*Seria esse o recado de seu avô? Seria hora de partir? Era esse o recado do ancião?*

*Não. Seu avô era duro, porque a vida era dura. E a lua da vida do jovem xamã entrava em nova fase. O velho índio queria lhe dar uma missão*

- Estudo a tradição, os rituais, a força da Wyld e o poder das plantas, avô. Sou um xamã de nosso povo, e dedicarei minha vida a Gaia.

*Gawonii olha pra baixo pensativo. O território em que cresceu e que amava estava desaparecendo diante dos seus olhos. Os homens brancos estavam chegando, e a Wyrm caminhava junto deles.*

- Vou enfrentar a Wyrm, avô. Ainda não sei como. Mas os homens brancos em nossa terra, eles não respeitam a Wyld. Preciso ensiná-los, e trazê-los para Gaia.

*O velho índio se levanta. Chea Sequah viu muito em seus dias, mas agora seu corpo estava gasto. Gawonii podia ver como suas juntas estalavam e como o avô andava com uma certa dificuldade. Esticando os braços cansados, enquanto olha para o horizonte. Gawonii tem um pressentimento ruim sobre a conversa, e a sensação só continua quando o Theurge percebe que Pássaro Vermelho não o encara quando começa a falar.*

-Nós, os filhos dos Uktena, sempre fomos os guardiões dos segredos. A Mãe Gaia nos deu a curiosidade, e a curiosidade nos deu o conhecimento, das coisas deste mundo e além. Sempre fomos os místicos e ocultistas dentre os Garou, os mais sábios e astutos, tínhamos muitos inimigos, mas ainda mais aliados. O Irmão mais Novo e o Irmão do Meio, os filhos do Gato, Corvo, Coiote e Urso, os espíritos... O Grande Uktena foi generoso...

-Até que o Homem Branco chegou, e com ele, a Wyrm. Eu já te expliquei, criança, sobre como os caerns dos Uktena mantinham os maiores servos da Wyrm aprisionados, e sobre como a invasão dos brancos e seus Parentes Garou destruiu toda nossa rede de proteção. Um a um, os grandes Malditos escapam de suas prisões, e o maior deles é a Devoradora de Tempestade. A Umbra nunca mais foi a mesma nas Terras Puras depois de sua fuga, e o caos que ela vem causando...

-Tudo isso e mais é sua obrigação saber como Lua Crescente, Escuta-Mais-do-que-Você. Mas me diga, alguma vez eu lhe contei sobre os Croatan? Nosso Irmão do Meio?

- Quando o homem branco veio para as Terras Puras trazendo a Wyrm consigo, o irmão do meio enfrentou um grande mal. Toda a tribo se sacrificou para detê-lo. Os croatans eram devotados à Honra, como nós somos a Sabedoria. Eles deram a vida da tribo em favor de Gaia.

*Gawonii não percebeu que sua voz saia mais grave, as palavras saiam mais lentamente e sua postura se tornava solene. O jovem não olhava diretamente para o avô, apesar de estar atento ao seu mentor, mas para algum lugar no vazio. A história dos Croatans ainda mexia com os espíritos dos Uktenas e Wendigos*

- Foi o fim tribo. Isso foi a muitas gerações. E nunca mais um filhote Croatan apareceu. A Devoradora-de-Almas consumiu as almas da tribo.

*O velho índio assente com a cabeça gravemente. Podia ser um tutor severo, mas também reconhecia uma resposta bem dada.*

-Fico feliz que essas folhas feias na sua cabeça não são só enfeite, você se lembra bem das lições.

-Sim... o Irmão do Meio... Nossa primeira baixa quando os Arautos da Wyrm chegaram, e a pior delas. Você se lembra dos Vigias dos Malditos, não? Aqueles dentre de nossa Tribo que têm a missão mais nobre, e mais perigosa: a de prender e vigiar Malditos poderosos demais para serem destruídos sob uma rede de caerns que prende a todos. E sobre como os Arautos da Wyrm, ao tomaram nossos caerns, enfraquecem cada vez mais esta rede, libertando ameaças indizíveis na face de Gaia e na Umbra. 

-Os Vigias dos Malditos estão agitados. Relatos se espalham por toda a Tribo que a corrente que prende os Malditos não para de enfraquecer. A fuga da Devoradora de Tempestades foi um golpe do qual os Vigias ainda não se recuperaram, mesmo depois de quarenta invernos. 

*Pássaro Vermelho dá um suspiro pesado*

-E é num clima destes em que o medo, junto com as notícias, se espalham. Há algumas luas chegou uma notícia trazida por um Lua Crescente, como nós, meio insano, como você. Disse que há anos e anos o Irmão Mais Velho e o Irmão do Meio forjaram um pacto nas colinas ao norte. As duas Tribos, numa jura de amizade e fraternidade, trocaram alguns caerns entre si, e é nesse ponto que a história para de fazer sentido. Pelas contas e mapas dos Galliards da Tribo, o número nunca bate. Sempre falta um caern dado pelos Uktena aos Croatan, e é aqui que entra o medo, disfarçado de esperança. Os Vigias dos Malditos dizem que um novo caern poderia fortalecer as correntes que prendem os grandes Malditos sob a terra, ou pelo menos lhes dar mais tempo até conseguirem uma solução melhor, então eles querem que este "caern perdido" seja encontrado...

-Mas é uma busca de tolos, Gawonii. Tolos desesperados. Os anciões da Tribo não podem lançar nossos Bravos em busca de uma lenda boba, mas ao mesmo tempo não podem ignorar as palavras dos Vigias. Então cada Seita está mandando alguns de seus filhos atrás desta lenda.

*Chea Sequah suspira de novo, e desta vez Gawonii consegue sentir o peso da idade que está sobre as costas do avô.*

-Os anciões da seita da Onda de Capim fizeram sua escolha, Escuta-Mais-do-Que-Você. Eles escolheram alguém jovem, cuja experiência e conhecimento não farão falta. Alguém cujo brilhantismo causa inveja nos que tem menos talento, mas linhagens mais nobres. Um impuro...

-Os anciões querem que você investigue, Gawonii. Querem um cordeiro para sacrificar e aplacar as vontades dos Vigias dos Malditos.